No último dia 30, por volta das três horas da tarde, encontrava-me no interior de um microônibus a caminho de casa. Voltava da tradicional pelada de domingo com os amigos, onde, mais uma vez, todos os meus esforços foram em vão e eu amargava mais uma derrota.
Ao entrar no ônibus, sentei-me à janela. Estava um pouco cansado e não quis abrir nenhum livro, apenas fiquei observando o que se passava na rua, pensando no almoço que àquela hora meu pai já havia de ter preparado, e eu esperava ansiosamente.
A dois pontos de onde eu subi, um casal faz sinal, o motorista pára, e os dois entram na lotação. Eles estão carregados de bolsas e sacolas de supermercado, cujo conteúdo transpassa as embalagens de plástico. O rapaz é gordo, aparenta ter entre 35 e 40 anos de idade. A mulher que o acompanha parece ter a mesma idade e também se mostra visivelmente acima do peso. Por sorte, encontram poucos passageiros (seis, além de mim), e logo se acomodam com as mercadorias no fundo do microônibus.
Um ponto adiante, nova parada. Desta vez, quem sobe é uma bela mocinha. Cabelos longos e lisos, nariz arrebitado, olhar penetrante; o corpo malhado veste uma calça justa e uma blusa curta que deixa o umbigo à mostra. Ela é dessas que despertam o desejo até dos mais inibidos. Escolhe o lugar e senta.
Tudo ia muito calmo, pelo menos para mim. Mas não demoraria muito para eu perceber que naquele dia nem todo mundo estava tão tranqüilo como eu. Começo a notar algo estranho quando o motorista do ônibus é obrigado a mudar o trajeto.
Por causa do feriado de 1° de maio, algumas ruas foram interditadas para organização das tradicionais festas populares do Dia do Trabalho, e daí o motivo pelo qual o motorista teve de fazer o desvio. É necessário fazer um contorno por algumas ruas paralelas para que se volte à rota original. O motorista, então, começa a fazê-lo.
Já em uma rua um pouco afastada das que estavam bloqueadas, a bela mocinha já citada se levanta do assento e vai até a direção do motorista pedir para que seja deixada na esquina, que, segundo ela, é bem próxima a sua casa.
A cobradora, com roupas largas e feições bastante masculinizadas, aprecia o charme da jovem garota, e intervém brincando:
- Aí, colega, tudo bem, mas vai custar mais caro!
O ônibus pára e a garota desce onde havia solicitado.
Duzentos ou trezentos metros depois, ainda no caminho de volta ao percurso normal da lotação, o casal do fundo se levanta erguendo todas as bolsas e sacolas que carregavam. O gorducho aperta a campainha e pede para descer no próximo ponto.
O motorista olha pelo retrovisor, demora alguns segundos, e então diz que não poderá parar porque aquele ponto não faz parte do itinerário do ônibus. O rapaz parece ou tenta não entender.
- Aqui é melhor pra mim e eu tô com todas essas compras...
Ele é ignorado pelo motorista, que avança com o ônibus. O rapaz tenta outra vez.
- Eu dei sinal, você não ouviu?
Desta vez, o motorista responde e reforça o que já havia dito.
- Já disse que não posso parar e não vou parar porque esse não é o meu percurso.
A mulher que está com o rapaz se revolta e dispara de maneira provocativa:
- Pra menina lá atrás você parou até na esquina, né? Pois é, já sei. Ela é cheirosinha!
O silêncio do motorista e o avanço constante do ônibus parecem transtornar o rechonchudo, que, num ato de fúria, desfere violentamente um chute contra a porta. O ruído soa ensurdecedor e assusta os passageiros. A porta então se abre, o motorista breca o ônibus e o gorducho desce com o montante de sacolas.
Desta vez, a fúria toma conta do motorista. Ele desce do ônibus e começa a trocar ofensas com o casal.
O gorducho revolto tenta agredir o motorista, mas é contido por um dos passageiros que se envolveu para tentar acabar com aquela cena patética.
O rapaz que danificou a porta desiste da agressão e começa a se afastar. A situação se acalma, pelo menos por algum tempo, já que, antes de se distanciar, ele ainda ouve a ameaça do motorista, que repete três vezes bem devagar, com um olhar fixo e impiedoso na figura de seu novo inimigo, como se estivesse fazendo uma promessa para si mesmo:
- Eu vou te apagar. Eu vou te apagar. Eu vou te apagar.
Pouco tempo depois o ônibus já havia voltado para o seu trajeto costumeiro e então eu desci. Apenas cinco minutos me separavam do ponto de ônibus até a minha casa e ao meu almoço tão esperado. Nesse tempo, pensei em tudo aquilo que havia presenciado desde que saíra do futebol e comecei a me questionar.
Por que tantas injustiças? Por que tantas diferenças? Por que tantas canalhices?
Como o Homem que descobre o poder da natureza, que descobre a música... O Homem que constrói maravilhas... Que ama, que procria... Como esse mesmo Homem é capaz de humilhar o seu semelhante, desrespeitá-lo, tirar-lhe a vida por coisas tão pequenas?!
Desde os primórdios tentam buscar soluções para tantas incoerências.
Uns, profetas, dizem que existe o caminho para a Paz. Outros, otimistas, afirmam que a Paz é o caminho. Definitivamente, não entendo o que eles dizem. Só o que posso dizer é que desconheço o caminho da Paz.